Uso da ferramenta de metagenômica na detecção de patógenos de importância clínica produtores de ESβL e carbapenemases em diferentes hospedeiros
Ana Cristina Gales
Nome do projeto
O que é
O projeto teve como objetivo principal compreender a disseminação de Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae carreadoras de genes de resistência codificadores de β-lactamases de espectro estendido (ESβL) e de carbapenemases em amostras de fezes de diferentes hospedeiros nas cinco regiões brasileiras. O sequenciamento do metagenoma das amostras revelou um total de 21.029 espécies bacterianas distintas, variando de 12.388 em humanos a 16.779 em aves. O bacterioma foi composto principalmente por espécies pertencentes aos filos Firmicutes, Proteobacteria, Bacteroidetes e Actinobacteria. A análise do resistoma detectou um total de 405 genes de resistência aos antimicrobianos (GRA) que codificam resistência a 12 classes de antimicrobianos distintos. Os genes que codificam enzimas modificadoras de antimicrobianos foram os mais frequentes. Interessantemente, foram observados genes codificadores de carbapenemases adquiridas, como blaAIM, blaCAM, blaHMB e blaGIM, que não haviam sido relatados anteriormente na América Latina. O cultivo bacteriano das amostras de fezes incluídas no estudo utilizando pressão seletiva para detecção de ESβL e carbapenemases demonstrou a presença dos genes blaKPC-2 e blaNDM-1 que não foram detectados na análise de metagenômica. Por fim, a simulação de Monte Carlo demonstrou que os humanos são o principal reservatório de blaTEM-like, blaSHV-like, blaCTX- M-like, ao contrário dos bovinos.
Como foi o experimento
As coletas de fezes foram realizadas em três propriedades rurais localizadas em cada uma das cinco regiões geográficas do Brasil. Cinco centros colaboraram com o projeto, sendo estes: Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais da Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD) em Dourrados – MS (Região Centro-Oeste), Universidade Regional de Blumenau (FURB) em Blumenau – SC (Região Sul), Instituto Evandro Chagas (IEC) em Ananindeua – PA (Região Norte), Universidade Federal do Ceará (UFC) em Fortaleza – CE (Região nordeste) e Universidade São Francisco (USF) em Bragança Paulista – SP (Região Sudeste). As amostras de fezes foram coletadas em swab com meio Amies com carvão e encaminhadas ao Laboratório Alerta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), onde foi realizado a extração de DNA total e cultivo bacteriano. O DNA extraído foi encaminhado para o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) onde foi realizado o sequenciamento do metagenoma em um sistema NextSeq 500 usando o kit NextSeq 500/550 high-output v2.5 (300 ciclos) (Illumina, EUA), com o sistema configurado para produzir 2 × 150 bp leituras. Posteriormente, foi realizado as análises da composição do bacterioma e do resistoma com base no total de unidades taxonômicas operacionais (OTUs) de espécies selecionadas (Salmonella spp., Escherichia spp., Enterobacter spp. e Klebsiella spp.). Dessa forma, foi gerado o índice de Abundância Relativa (AR) em relação aos marcadores de resistência que podem estar relacionados à produção de ESβLs. Para cada grupo de hospedeiros (humanos, suínos, bovinos e aves), a abundância relativa dos genes codificadores de ESβL sobre o total de OTUs encontradas das espécies índices bacterianas foi usada para aplicar a simulação estocástica por cadeias de Markov (Monte Carlo).
Principais resultados
Foram determinadas as composições microbianas em 107 amostras coletadas de aves (n = 30), bovinos (n = 30), suínos (n = 15) e humanos (n = 32) de todas as cinco regiões geográficas brasileiras (Fig. 1). O número médio de leituras por amostra variou de 1.474.376 a 49.909.522, totalizando 1,62 bilhão de pb. O número médio de contigs N50 foi de 4.160, e o de sequências codificantes de genes (CDS) foi de 112.267. Cerca de 5,4 milhões de reads tinham assinaturas taxonômicas até o nível de espécie.
Um total de 21.029 espécies bacterianas únicas foram identificadas, com números variando de 12.388 em humanos a 16.779 em aves. O bacterioma foi composto principalmente por espécies pertencentes aos filos Firmicutes (41%), Proteobacteria (29,4%), Bacteroidetes (14,8%) e Actinobacteria (8,7%). Quando a diversidade e a riqueza da composição bacteriana humana foram comparadas às dos animais, e o estimador de riqueza Chao1 mostrou que o número de espécies foi significativamente maior em bovinos, aves e suínos (P ≤ 0,05). Com base no índice de Shannon, as estimativas de diversidade foram semelhantes nos diferentes hospedeiros, exceto para suínos da Região Sul e bovinos da Região Centro-Oeste, que apresentaram maior diversidade (P ≤ 0,05). Além disso, a composição bacteriana variou entre os rebanhos bovinos presentes nas Regiões Sul e Nordeste. A diversidade observada não foi afetada pela dominância de algumas espécies, conforme estimado pelo índice de Simpson, que apresentou equabilidade elevada em todos os hospedeiros, não sendo encontrada diferença estatisticamente significativa.
A análise do resistoma detectou um total de 405 GRA para 12 classes antimicrobianas distintas. Os genes que codificam enzimas modificadoras de antimicrobianos (n = 231; 57%) foram os mais frequentes, seguidos por genes relacionados à alteração do sítio alvo (n = 95; 23,5%) e sistemas de efluxo (n = 79; 19,3%). Entre os genes que codificam enzimas modificadoras de antimicrobianos, aqueles que codificam β-lactamases e enzimas modificadoras de aminoglicosídeos (AMEs) foram os mais frequentes. Os genes codificadores de β-lactamases intrínsecas e adquiridas foram de longe o grupo de enzimas mais frequente e diversificado encontrado (n = 122; 52,8%). De acordo com a classificação de Ambler, 42 genes codificadores de β-lactamases pertenciam à classe molecular C (n = 42; 34,4%), seguida pela classe A (n = 39; 32,0%), classe D (n = 25; 20,5%). e classe B (n = 16; 13,1%). Curiosamente, foram observados genes codificadores de carbapenemases adquiridas, como blaAIM, blaCAM, blaHMB e blaGIM, que não haviam sido relatados anteriormente na América Latina. A ocorrência de blaAIM foi observada em bovinos da Região Sul, em aves da Região Sudeste e em bovinos e aves da Região Nordeste. Da mesma forma, blaSME foram encontrados em bovinos das Regiões Sul e Centro-Oeste e em humanos da Região Norte. Alguns desses GRA foram identificados em locais específicos; por exemplo, blaGIM e blaCAM foram recuperados de diferentes hospedeiros na região Sudeste, e blaHMB e blaVEB nas regiões Centro-Oeste e Nordeste, respectivamente. Além disso, foi observado um total de 59 genes codificadores de AME distintos, entre os quais as acetiltransferases (AACs) foram as enzimas mais frequentes (n = 27 variantes), incluindo aac(6′)-Ib-cr, seguido por adenililtransferase (ANTs) (n = 18 variantes) e fosfotransferases (APHs) (n = 14 variantes).
Os dados de resistoma obtidos a partir do sequenciamento do metagenoma foram utilizados para a realização da simulação de Monte Carlo com intuito de entender a ocorrência dos genes blaTEM-like, blaSHV-like, blaCTX-M-like na população de humanos, bovinos, suínos e aves em nosso país. A análise de simulação de Monte Carlo foi escolhida como ferramenta de análise para permitir uma predição sobre a possível distribuição de determinados genes na população total partindo de grupo amostral menor. Os dados gerados revelaram com uma certeza de 97,80% que, em humanos, a probabilidade da abundância relativa de blaTEM-like, blaSHV-like, blaCTX-M-like pode variar de 0,006% a 1,179%. Com certeza de 96,9%, a simulação indicou que a abundância relativa desses GRA entre as aves está entre 0,001% e 0,349%. Já entre os bovinos, a abundância relativa dos genes selecionados está entre 0,00% a 0,155% (certeza de 96,97%). Por fim, a predição para suínos se situa entre 0,001% e 0,703%.
O número de espécies totais foi significativamente maior em bovinos, aves e suínos do que em humanos. Entretanto, analisando os dados em conjunto, podemos concluir que os humanos devem ser o principal reservatório de blaTEM-like, blaSHV-like, blaCTX-M-like, enquanto os bovinos são os que apresentam menor taxa para os genes selecionados. Esses dados indicam que, quanto maior a diversidade de espécies em um hospedeiro, menor é a abundância relativa dos genes de resistência blaTEM-like, blaSHV-like e blaCTX-M-like.
A partir do cultivo dos swabs, foi possível recuperar 480 bactérias, sendo os gêneros Escherichia (22,5%) e Pseudomonas (13%) os mais frequentes. Quando analisamos a ocorrência de cepas produtoras de ESβL nos hospedeiros, foi possível constatar que a maioria dessas eram provenientes de humanos e de aves. Nossos resultados demonstraram que sete hospedeiros estavam colonizados por cepas produtoras de carbapenemases, das quais as produtoras de KPC foram a mais frequentes, estando presente em cinco hospedeiros.
Por que é inovador
Vários estudos brasileiros têm reportado a frequência, de fenótipos e os genótipos de bactérias multirresistentes em diferentes nichos ecológicos. Entretanto, nenhum estudo utilizou a abordagem da metagenômica para avaliar o microbioma e resistoma de amostras de humanos e animais de produção coletadas, durante um mesmo período de tempo, em todas as regiões geográficas do Brasil.
Implicações para o sistema de saúde brasileiro
Atualmente, o fenômeno da resistência aos antimicrobianos não se restringe ao ambiente hospitalar. A colonização e/ou infecção por bactérias resistentes de indivíduos na comunidade vem se expandido progressivamente nos últimos anos, evidenciando assim que o uso indiscriminado de antimicrobianos tem um impacto global. Um atributo fundamental de um programa de vigilância integrada de resistência antimicrobiana em bactérias transmitidas pela cadeia alimentar é a capacidade de monitorar e detectar o surgimento e a disseminação de bactérias resistentes em produtos de origem animal e sua correlação com a composição da microbiota humana. O crescente comércio global de animais de produção e seus produtos derivados ressaltam a importância do compartilhamento global de dados sobre patógenos e doenças transmitidas por alimentos, incluindo dados sobre resistência antimicrobiana. As informações produzidas neste projeto poderão servir como modelo para a implantação futura de um programa nacional de vigilância integrado de resistência aos antimicrobianos baseado em Saúde Única. Ele também deu origem ao grupo de pesquisa denominado GUARANI (Grupo Brasileiro De Saúde Única).
Próximos passos
Pretendemos ampliar o número de amostras examinadas no Brasil em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) na seleção de propriedades representativas de criação de bovinos, suínos e aves.
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