A estratégia inovadora que avalia o desenvolvimento infantil durante campanhas de vacinação
Sonia Isoyama Venancio
Chamados de primeira infância, os cinco primeiros anos de vida de uma criança são pilares cruciais para determinar o adulto que ela será no futuro.
Mas como avaliar o desenvolvimento de cada uma delas ao redor do mundo para poder corrigir eventuais atrasos? Só no Brasil, são 13 milhões de habitantes com menos de quatro anos, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) 2019. Vários esforços têm sido empreendidos para disponibilizar um instrumento global de avaliação do desenvolvimento infantil e especialistas têm se desdobrado para criar instrumentos de medição que ofereçam um retrato preciso do desenvolvimento infantil em larga escala em vários países, mas isso não havia acontecido ainda no Brasil.
Baseada em sua experiência com grandes inquéritos sobre aleitamento materno, a médica Sonia Isoyama Venancio, do Instituto de Saúde de São Paulo (SP), propôs uma solução inovadora para o problema. Utilizar as campanhas de vacinação no Brasil como oportunidade para perguntar aos pais e cuidadores como estão seus filhos de até cinco anos. “Era preciso criar algo rápido que pudesse ser respondido na fila para a vacina”, afirma Sonia.
Ela elaborou, junto com pesquisadores e especialistas da área, um questionário de 9 a 24 perguntas, de acordo com a idade da criança, que engloba os domínios cognitivo, motor, de linguagem e socioemocional, relacionado às reações e comportamentos da criança. Considerando a importância de analisar fatores que influenciam no desenvolvimento integral da criança o questionário também aborda questões sobre saúde, nutrição, aprendizagem oportuna, segurança, proteção e cuidados responsivos, com base no “Nuturing Care Framework” da OMS, Unicef e do World Bank. Segundo a pesquisadora, esse é o primeiro instrumento brasileiro que possibilita monitorar os cuidados oferecidos às crianças e seu impacto no desenvolvimento infantil.
O projeto PIPAS (Primeira Infância Para Adultos Saudáveis), como foi batizado, tinha vários planos de voo para cumprir. A primeira etapa foi construir o Questionário de Avaliação do Desenvolvimento (QAD-PIPAS), analisando sua consistência e validade em comparação a outros instrumentos como o Caregiver Reported Early Development Index (CREDI). Inicialmente foi feito um piloto com 367 crianças nas cidades escolhidas para avaliar o instrumento durante a campanha de vacinação: Recife, Brasília e Embu das Artes para verificar se os cuidadores aceitavam participar e entendiam as perguntas com o objetivo de deixar o questionário mais ágil e redondo.
Com os materiais para a campanha desenvolvidos e os mais de 274 entrevistadores treinados para aplicar o instrumento, a coleta de dados ocorreu durante a campanha nacional de vacinação em 16 de setembro de 2017 em 44 postos de saúde nas três cidades. Foram ouvidos os cuidadores de 2331 crianças de zero a cinco anos, enquanto elas se divertiam com brinquedos e livros. A pesquisa levantou dados sociais, econômicos, de saúde, nutrição, acesso a creche, participação em programas sociais, além de marcadores de desenvolvimento infantil e atividades para estimular as crianças. Um site do programa armazenava as informações para disponibilizá-las depois para futuras análises e para informar o planejamento de gestores da cidade. Essa etapa foi fundamental para a validação do instrumento, mostrando resultados muito favoráveis.
Os pesquisadores levantaram alguns fatores cruciais para identificar suspeita de atrasos no desenvolvimento infantil. Eles incluem: baixa escolaridade materna, ter participado de programa social, apresentar problemas de saúde e o cuidador suspeitar que a criança tem problemas de desenvolvimento, o que pode aumentar em duas vezes a chance de ela ter algum tipo de déficit de fato. Por outro lado, estímulos como ler livros infantis têm influência positiva. O problema é que 30% dos responsáveis disseram não ter nenhum livro em casa e metade das famílias, no máximo três obras na estante. “As que não foram estimuladas tinham pontuação menor no questionário”, afirma Sonia.
Também chamou atenção dos pesquisadores o fato de que 23% das crianças conviviam com usuários de álcool ou outras drogas e 42% dos cuidadores nunca tinham recebido nenhuma informação sobre desenvolvimento infantil. “É preciso treinar agentes de saúde e responsáveis por creches para informar os pais sobre isso”, diz Sonia. “Essa tarefa não é cara nem exige grandes tecnologias, mas precisa investir em formação e comunicação”.
Com o objetivo de melhorar políticas públicas, a equipe apresentou os resultados a gestores de diversas áreas das cidades participantes, que discutiram como implantar ações prioritárias para o desenvolvimento infantil. “Para engajar e sensibilizar, temos que envolver os três setores: saúde, educação e assistência social”.
Por ser considerado um instrumento simples de usar, fácil de aplicar e barato, o Pipas chamou atenção de outros gestores e já alçou voos mais altos. No ano passado, recebeu investimento da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal para o desenvolvimento de um aplicativo, que facilitou ainda mais a coleta de dados. O teste foi realizado em 16 municípios do Ceará e rastreou 7000 crianças. Ainda em 2019, o Ministério da Saúde garantiu recursos para aplicar o questionário em todas a capitais, o que ocorrerá em 2021 devido à pandemia de Covid-19. Isso expandirá o alcance para 27000 crianças, ampliando ainda mais a amostra e o diagnóstico da situação do desenvolvimento infantil no Brasil. “Também estamos estudando a possibilidade de ele ser incorporado à próxima PNAD e ser utilizado em 446 municípios prioritários em um projeto do MS que busca o fortalecimento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança”.