O centro que reúne dados de 100 milhões de brasileiros para demonstrar o impacto de condições e programas sociais na saúde
Maurício Lima Barreto
Um dos fatores mais determinantes para se traçar conclusões em estudos científicos é o tamanho da amostra. Em geral, quanto maior ela é, mais precisos e universais são os resultados derivados dela. Imagine, agora, uma amostra que abarcasse metade da população brasileira ou, mais precisamente, 114 milhões de brasileiros.
Pois foi exatamente este gigantesco banco de dados que o projeto proposto pelo epidemiologista Maurício Barreto, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Ph.D. em Epidemiologia pela University of London. O financiamento possibilitou a implementação do primeiro Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde, denominado Cidacs e comparável a instituições internacionais de dados semelhantes para pesquisa no Canadá e na Europa.
Composto por dados do Cadastro Único (CadÚnico) e Programa Bolsa Família (2004 a 2015), o Cidacs vincula essas informações às bases do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM, de 2000 a 2015), Sistema de Informações de Nascidos Vivos (Sinasc de 2001 a 2015) e Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), ainda em processo de estruturação. Juntos, eles formam a Coorte de 100 Milhões de Brasileiros, a maior do país. Em estatística aplicada à ciência, coorte é um conjunto de pessoas que tem em comum um evento que se deu no mesmo período (por exemplo: a coorte de pessoas que nasceram entre 1960 e 1970; coorte de mulheres casadas entre 1990 e 2000). Este tipo de estudo científico permite compreender o impacto de determinados eventos em um desdobramento no longo prazo. Por exemplo: os efeitos do Bolsa Família na mortalidade infantil nos últimos dez anos.
“Apenas países desenvolvidos como Canadá, Suíça e Escócia têm coortes do tamanho da nossa”, afirma Maurício. “O Cidacs é inovador porque é o primeiro em um país em desenvolvimento de renda média”. A quantidade de informações é tão grande que foi necessário abrigar parte dos dados em um supercomputador.
Superado o desafio de reunir e conectar (‘linkar’ ou fazer o ‘linkage’, como se diz no jargão dos cientistas de dados) todas essas bases, a equipe agora está unindo o Sinasc e o CadÚnico para criar a maior coorte de nascimentos do Brasil, com 24 milhões de crianças. Com esse conjunto de dados, será possível estudar os efeitos das cesarianas na mortalidade infantil e os impactos do nascimento prematuro e de doenças como zika, sífilis e outras no desenvolvimento infantil em escala populacional.
O cruzamento de dados oficiais sobre condições sociais e econômicas da população com informações clínicas sobre doenças e outros males permite traçar conclusões sobre como esses fatores, chamados de determinantes sociais, podem ser nocivos à saúde. “Também é possível avaliar se programas sociais e de transferência de renda podem melhorar indicadores de saúde e como isso se dá na prática”, destaca Maurício. “Demonstrar que este processo de redução da pobreza tem efeitos importantes na saúde está na pauta de organizações de todo mundo”.
Desde 2014, quando foi montado, o centro tem servido como um grande gerador de dados e evidências sobre os impactos na saúde dos determinantes sociais e programas sociais para orientar o processo de tomada de decisão, fazendo a ponte entre a ciência e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.
Atualmente, cerca de 30 projetos de pesquisa utilizam dados do Cidacs. Entre eles estão estudos sobre os efeitos do Bolsa Família entre pacientes com hanseníase e quanto as condições sociais podem favorecer o aparecimento desta doença. O cruzamento de dados mostrou que a adesão ao tratamento aumenta em cerca de 22% e a cura em 26% quando a pessoa com hanseníase é beneficiária do Programa Bolsa Família. Estudos mostram que a incidência da doença pode ser até 14% menor entre famílias que recebem o auxílio do governo.
As primeiras pesquisas utilizando a base de dados do Cidacs, que fizeram parte do estudo inicial financiado pelo Grand Challenges Brazil, focaram nos temas de saúde materno-infantil abaixo e nos impactos do Programa Bolsa Família (PBF) nesta área. Por exemplo, após cruzarem os dados do CadÚnico com o Sinasc, os pesquisadores observaram que a maior causa de morte das crianças foram infecções, seguidas de malformações congênitas e causas externas, sendo que dois terços desses óbitos se concentraram no primeiro ano de vida. O peso é maior para aqueles que vivem em meio rural, sem fonte adequada de abastecimento de água, em casas sem água encanada, e cujas mães têm baixa escolaridade.
O centro recebeu financiamento adicional de várias organizações como o Ministério da Saúde, Wellcome Trust, Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde (Reino Unido) e CNPq. E tem chamado a atenção de organizações do mundo todo bem como de gestores públicos de saúde brasileiros e internacionais. “Nosso desafio agora é pensar o Cidacs como uma estrutura autônoma e sustentável, capaz de se manter sozinha por muitos anos”, afirma Maurício.