O leite humano em pó que aumenta em 60% os nutrientes do leite materno para bebês prematuros
José Simon Camelo Junior
Ao longo de seus 36 anos de carreira, o pediatra José Simon acompanhou diversos prematuros de muito baixo peso – com menos de 1,5 quilos ao nascer – com dificuldades para amamentar, por suas limitações fisiológicas naturais. Sem forças para sugar diretamente do seio da mãe e sem coordenação dos processos de sucção-deglutição-respiração, eles precisam de uma ajuda especial durante a alimentação por sonda que deve ser acrescida de nutrientes essenciais, atualmente garantidos por meio de fórmulas infantis especiais para prematuros e aditivos comerciais para o leite humano. O problema é que esses produtos, em geral, são derivados de animais, como vacas e outros, e podem facilitar a ocorrência de inflamações e sangramentos intestinais e algumas condições mais graves como a chamada enterocolite necrosante (ECN). Elas comprometem o ganho de peso e, às vezes, até a sobrevivência dos recém-nascidos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) neonatais, quando não deixam sequelas graves no sistema digestivo. Desde 2013, Simon e sua equipe pensam numa solução para este desafio. “Testamos vários métodos e quebramos muito a cabeça”, lembra ele. “Tentamos centrifugar, desnatar, tirar a lactose, mexer na composição, mas sem sucesso”. A saída foi a mais simples: acrescentar o próprio leite humano, porém em pó, em quantidades conhecidas, ao leite materno líquido e, assim, incrementar seus nutrientes. Restava saber como fariam isso na prática e se o produto final seria seguro para ser armazenado e consumido. Simon utilizou o financiamento semente do Grand Challenges para avaliar todos esses aspectos.
A pesquisa demonstrou que o leite materno enriquecido com o pó (ou liofilizado) aumenta em até 60% os nutrientes na concentração de 1,5 para 1 e é seguro para ser conservado em freezer e utilizado em até seis meses. Para cada 75 mililitros de leite líquido materno, devem ser acrescidos 7 gramas do pó do leite humano (correspondente a 50 ml) numa concentração próxima a 10%.
Produzi-lo exigiria apenas a instalação de um liofilizador em cada um dos 223 bancos de leite espalhados pelo Brasil e um analisador dos componentes do produto em alguns bancos de referência. “É a primeira tentativa séria de enriquecimento de leite humano que eu vejo aparecer no mundo”, afirma Paolo Manzoni, da Universidade de Turim, especialista em nutrição neonatal.
O sucesso desta primeira etapa e o baixo custo do produto, batizado de Lioneo, motivaram um financiamento adicional de 1,2 milhão de reais em 2017 do Ministério da Saúde e do CNPq para o pesquisador continuar o projeto. Desde 2018, Simon lidera um ensaio clínico randomizado, controlado e duplo cego. Trata-se do método científico mais confiável para testar a aceitação do liofilizado e seus possíveis efeitos no crescimento, desenvolvimento e saúde dos bebês.
A Fase 1, concluída em maio de 2020, consistiu em avaliar 40 recém-nascidos com menos de 1,5 quilo para testar a segurança e tolerância do produto. A partir do consentimento dos pais, eles eram alocados, por sorteio, em dois grupos: um que recebia o Lioneo e o outro que consumia um aditivo comercial. Apenas a nutricionista que preparava o suplemento sabia o que cada prematuro estava ingerindo. A equipe observou os participantes por 21 dias, coletando sangue no início e no final do período e medidas como perímetro craniano (em volta da cabeça), circunferência abdominal, comprimento e peso diário.
Depois das análises dos vinte primeiros bebês, um comitê externo formado por especialistas na área, avaliou a segurança do experimento para as crianças e emitiu um parecer autorizando sua continuidade. Os resultados preliminares, ainda não publicados, indicam que o Lioneo é seguro para os prematuros e foi bem tolerado por eles. Entre os que consumiram o liofilizado, não houve registro de nenhuma complicação grave. Já no grupo que recebeu a fórmula comercial, houve um caso de enterocolite necrosante e uma sepse tardia, inflamação que se espalha pelo organismo em decorrência de complicações de uma infecção. “Isso nos deixa otimistas para a Fase 2”, diz Simon.
Nesta segunda etapa, o pesquisador vai coletar as mesmas medidas da primeira fase para avaliar em qual dos dois grupos o crescimento das crianças foi maior. Esses indicadores permitirão demonstrar se o Lioneo não é inferior ou até superior aos aditivos convencionais e se terá, de fato, menos efeitos colaterais.
O próximo passo, a Fase 3 e para qual ainda será necessário financiamento adicional, será ampliar a amostra de crianças, expandindo o estudo para outros centros e já com vistas à preparação para produzi-lo em larga escala e com baixo custo. “Avaliaremos se eles conseguem crescer com menos proteína, especialmente em comprimento e perímetro craniano, o que tende a ser mais saudável e pode mudar conceitos de nutrição de prematuros”. Publicado em revistas de impacto, como a PLoS One e Environmental Research, o processo de produção já é de domínio público. “Decidimos assim justamente para garantir acesso em diversos países e contextos econômicos e sociais”, diz Simon.